A Moratória da Soja: origens, distorções e reflexos para o produtor rural

A chamada Moratória da Soja foi concebida em 24 de julho de 2006, não como lei aprovada pelo Congresso Nacional nem como política pública editada pelo Poder Executivo, mas sim como um pacto privado firmado por grandes tradings e exportadoras de grãos, organizadas em torno da ABIOVE (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) e da ANEC (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais), em resposta à forte pressão de ONGs ambientais e de redes varejistas internacionais, especialmente na Europa. O objetivo declarado era impedir a compra de soja proveniente de áreas desmatadas no bioma Amazônia após aquela data, estabelecendo um mecanismo de autorregulação que rapidamente ganhou dimensão global.

Dois anos mais tarde, em 2008, houve um ajuste fundamental: o pacto passou a adotar como marco temporal definitivo a data de 22 de julho de 2008, alinhada ao recorte do PRODES e ao Código Florestal, transformando esse “cut-off date” em referência para auditorias, listas de conformidade e protocolos de compra. Assim, produtores que abriram áreas após 2008, ainda que em conformidade com a lei brasileira ou com autorizações ambientais válidas, passaram a enfrentar barreiras privadas para comercializar sua produção com as grandes compradoras signatárias da moratória. Em 2016, o acordo deixou de ser renovado anualmente e foi transformado em compromisso contínuo, mantendo esse marco de 2008 como cláusula pétrea.

É importante reconhecer que, sob o prisma ambiental, a moratória foi divulgada internacionalmente como um “case de sucesso”: relatórios apontaram que a participação da soja no desmatamento amazônico caiu de níveis expressivos no início dos anos 2000 para índices residuais após a implementação do pacto, enquanto a produção de soja na Amazônia cresceu principalmente sobre áreas já abertas. Esse discurso, entretanto, esconde os efeitos concorrenciais e comerciais que recaem diretamente sobre quem produz. Pequenos e médios produtores, mesmo cumprindo a legislação nacional, passaram a depender de auditorias privadas e de listas de conformidade elaboradas por um grupo de compradores concorrentes, sob pena de verem seu grão desvalorizado ou simplesmente excluído do mercado exportador.

Esse mecanismo, vendido como voluntário, na prática tem efeito obrigatório sobre o produtor rural, que fica refém de um arranjo privado coordenado pelas maiores tradings. Trata-se de um modelo em que os custos e riscos da conformidade são transferidos quase integralmente para dentro da porteira, enquanto o poder de decisão sobre quem pode ou não acessar o mercado fica concentrado nas mãos de empresas multinacionais. Aqui reside a crítica central: quando concorrentes diretos coordenam listas, protocolos e auditorias comuns, a linha entre um padrão de sustentabilidade e um cartel de compra torna-se tênue.

Foi justamente essa leitura que levou o tema ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Em 18 de agosto de 2025, a Superintendência-Geral do CADE, por meio do Despacho SG nº 13/2025, determinou a instauração do Processo Administrativo nº 08700.005853/2024-38, com imposição de medida preventiva que suspendeu as atividades ligadas à Moratória da Soja. Entre as determinações estavam a proibição do compartilhamento de informações comerciais e de auditorias conjuntas no âmbito do Grupo de Trabalho da Soja (GTS), além da retirada de listas e relatórios de conformidade dos sites das signatárias. Previu-se, ainda, multa diária de R$ 250.000,00 em caso de descumprimento. O fundamento foi a presença de fortes indícios de infração à ordem econômica, com base no artigo 36 da Lei 12.529/2011.

A reação foi imediata. A ABIOVE ingressou com o Mandado de Segurança Cível nº 1098857-10.2025.4.01.3400, perante a 20ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, sustentando que o despacho da Superintendência-Geral do CADE era ato monocrático, desproporcional e contrário às manifestações técnicas da Advocacia-Geral da União, do Ministério Público Federal e do Ministério do Meio Ambiente, todos favoráveis à manutenção da Moratória. Argumentou, ainda, que a imposição de multa diária e a obrigação de desarticulação imediata da estrutura da Moratória configuravam risco de prejuízo irreparável à sua imagem e às tradings associadas.

Em 25 de agosto de 2025, a juíza federal Adverci Rates Mendes de Abreu acolheu parcialmente a tese da ABIOVE e concedeu liminar no Mandado de Segurança nº 1098857-10.2025.4.01.3400, suspendendo os efeitos do Despacho SG nº 13/2025 e, com isso, restabelecendo a vigência da Moratória da Soja até julgamento definitivo do recurso administrativo no Tribunal do CADE. Para a magistrada, a decisão monocrática da Superintendência-Geral carecia de proporcionalidade, pois extinguia de imediato um arranjo de quase 20 anos sem debate colegiado, impondo medidas de grande impacto econômico e regulatório. Além disso, destacou a relevância da Moratória como instrumento reconhecido de promoção do desenvolvimento sustentável e da imagem internacional do Brasil.

Do outro lado, a Aprosoja/MT, entidade representativa dos produtores, interpôs agravo de instrumento no TRF1, buscando reverter a liminar concedida à ABIOVE. O argumento central é que a moratória funciona, sim, como um cartel de compra, restringindo a liberdade de comercialização do produtor rural, que, mesmo em conformidade com a lei brasileira, acaba submetido a exigências supralegais definidas por multinacionais e ONGs estrangeiras. Essa tese ganha força justamente porque a lei brasileira já estabelece regras claras de proteção ambiental e de uso da terra, inclusive com o Código Florestal, que exige reserva legal, áreas de preservação permanente e controle sobre desmatamentos após 2008.

Nesse contexto, o agro brasileiro vive hoje um cenário de incerteza. De um lado, grandes redes varejistas e compradores internacionais pressionam pela manutenção da Moratória e do marco temporal de 2008, vinculando contratos e certificações à sua observância. De outro, produtores e entidades de classe denunciam a moratória como instrumento de concentração de poder econômico e de exclusão comercial, que viola a livre concorrência e transforma um acordo privado em verdadeira barreira de mercado. O resultado é que, embora a moratória esteja formalmente restabelecida por decisão liminar, a disputa jurídica segue em aberto, com impactos diretos no comércio, no acesso a mercados e na própria liberdade de quem planta e produz dentro da legalidade.

A crítica que se impõe é clara: o Brasil já dispõe de legislação ambiental robusta e de mecanismos públicos de fiscalização. Substituir a lei por um arranjo privado coordenado entre compradores é fragilizar a segurança jurídica e colocar o produtor rural sob regras estrangeiras e cambiantes. Mais do que nunca, é necessário que o debate seja feito em termos de política pública legítima, aprovada democraticamente, e não por meio de pactos cartelizados que, sob o pretexto de proteger a floresta, acabam por enfraquecer o elo mais importante da cadeia: aquele que está no campo, produzindo alimento, renda e riqueza para o país.